O arraial

viveiros

Sábado, fim de tarde, alço-me ao café, o sempre “Tó” de facto “Arcadas”, como o fiz na juventude e agora de novo, aqui nos Olivais, uma ou duas bicas para despertar o teclado nocturno ou então nem tanto, pois talvez uma ronda de cervejas se cruzando um outro conhecido mais antigo, e se assim um pouco de bola, agora o defeso ou a selecção para tons mais plácidos do que se na aguerrida época, ou alguma má-língua sobre a geringonça, mas não a de todos, o que é bom porque o assim despique acicata a sede, esta devagarinho que tudo isto já pesa.

Mas hoje a esplanada vai diferente, avivada pelo aqui raríssimo Boné, e até o Barão, este que por cá não vejo há décadas, e ainda surgem um dos meus afilhados e o meu padrinho, estes um pouco mais habituais, como o também o são o Victor e o Manel, e este que está como eu, retornado ao bairro; a conversa intensifica, com muitas certezas e ainda mais risos, acelera o ritmo dos alguns uísques mas mais cervejas, alarga-se a mesa, cooptando a do lado, e assim, e como nem se percebendo como, as duas miúdas giras que lá estão e qu’a gente nem conhece, de vista sim, claro, que são giras e do bairro e da “nossa criação”, mas com as quais nunca faláramos – o que nem admira, tantas as décadas que estivemos fora -, elas que ali à mesa estavam um pouco abandonadas, apenas com outro Manel, mas esse é um puto, nem 50 ainda tem.

Neste entretanto vai-se ouvindo música ao longe e há quem saiba do que se trata, é o arraial dos antigos alunos dos Viveiros, a escola secundária do bairro, essa a que alguém veio a chamar Eça de Queirós já bem depois de – todos nós, descobrimos de imediato – lá termos estudado. Ora nem mais, é o momento de lá irmos, incentivo eu, que fui fundador da escola, aquilo de 76/77, as aulas a começarem em Janeiro, que a construção se tinha atrasado, ainda tudo lama pois nem o soalho fora colocado, esse que tão tóxico era que teve que ser substituído uns anos depois. Todos rimos e trocamos memórias daquela e doutras escolas em que andámos, uma escola pública então tão adernada e que fez brotar a gente qu’a gente é. Nisto passam umas horas, talvez nem tanto, esgotamos a paciência dos donos do agora já-não “Tó”, que querem ir ao descanso, parte de nós desmobiliza convocada pelas famílias, outra nada disso, e eu a insistir, que temos que ir ao arraial, reclamar a primazia, até porque sou fundador, e nisso não estou sozinho, afinal somos três os que o são. E assim avançamos, eu, o Manel, as raparigas, simpatícissimas,  e o puto.

Na entrada da escola percebemos que o arraial é para quem se inscreveu mas eu logo invoco, ufano, o nosso estatuto de veteranos, fundadores, que há que ter respeito por isso, pelos valores, mas tal nem seria necessário, somos acolhidos com simpatia, sorrisos largos e porta aberta. Avançamos mas desiludo-me logo, certo que vejo algumas caras conhecidas do bairro, aquelas do leve aceno se cruzadas na rua, mas é tudo gente mais nova, alunos das décadas de 80s e 90s, assim ninguém das minhas turmas, do meu tempo, nem sombra das figuras míticas desse então, aquela uma ou outra beldade mais universal, os detentores das Famel-Zundapp, um ou outro dealer, nenhum deles ali está, e a gente sabe que alguns heróis de então já partiram, a esse propósito fala-se do Rolo, e eu lembro quando ele foi lá aboletar-se na minha casa em São Martinho, chegando com a Laverda novinha em folha, tão contente ele estava.

Mas quem está, e muito me surpreende, e tanto isso me agrada, é o stôr Roxo, o lendário director dos Viveiros – sobre quem há anos o Quim Ai escreveu no Olivesaria – , daqueles tipos que fazem (uma) escola, “isch!, o stôr Roxo” abalroo-o eu, entusiasmado, e está ele impecável. Não se pode lembrar de cada um de nós, como é óbvio, por mais piratas que fossemos, que milhares de alunos lhe terão passado pela frente, mas lembra-se de tudo nós. 84 anos, é incrível, e nisso, enquanto o resto do meu grupo mergulha no balcão da sardinha, da febra e do entrecosto, fico-me com ele e alguns da comissão do arraial, imerso num naco de memorialismo, e ali apanho um outro stôr que já não é da minha época, de educação física – e eu rio-me, pois não a tínhamos no nosso tempo, não havia nem instalações nem condições, coisas do pós-PREC. E não é que, no puxa-palavra, dou que este stôr fez a guerra em Nampula?, um Polícia Militar, e de repente estou eu, em plenos Viveiros, 35 depois, a comover-me mesmo por o estar a ouvir lembrar as zonas onde tanto andei, tão depois dele, não só as Chocas e a Ilha, claro, mas também Montepuez, as picadas para Nairoto, para Mueda (“ha, ha, então?, PM fazia picadas?” resmungo eu, e um gajo está sempre a aprender, da irrazão alheia e da antiga, “claro, era uma parvoíce, mandavam-nos acompanhar para impor a ordem nas colunas no mato, como se isso fosse necessário” dispara ele), mas também do racismo dos sacanas dos “coca-colas” que, ao contrário dos metropolitanos, se recusavam a fazer rondas com a tropa negra. Por isto tudo, mais imperiais, claro, elas a correrem, que nem quero acreditar que estou em pleno pátio dos Viveiros com alguém que conhece Nairoto. E até uma sardinha, plebeísmo que me permito dada a comoção. Dança-se Xutos e assim, e ainda há quem saiba dançar a tocar guitarra, e eu faço-o, claro, surge a Macarena, imagine-se, saracoteio-me um bocado, e mesmo a uma espécie de kuduro me atrevo, bem apertado, gingado, até atrevido, como que vingando-me da maldita timidez que me esmagava nos meus tempos de escola.

Entretanto o stôr Acúrcio, que é a alma disto tudo, já percebi, e que parece ser um gajo bem porreiro, e o resto do pessoal vai-me dizendo que assim o é, avança para o palco, aquelas sempre palavras em nome da organização. Diz o que tem a dizer, e não o faz mal, nem muito, e isso é bom. E de repente chama-me ao palco, “o primeiro aluno desta escola” – tanto o terei eu já chateado no apregoar do meu estatuto de fundador – e põe-me a falar, e eu, aflito, surpreso pois só agora surpreendido com o que me aconteceu, lá balbucio qualquer coisa como “Ayô Viveiros!!” e salto do palco. Logo três ex-alunas me rodeiam, pitas, giras também, miúdas um bocadinho já aceleradas, e como, ao invés do que era sempre no meu tempo aqui, charrinhos nem os vi nem os cheirei, isso deverá-lhes-á ser só dos copos, assim dengosas sem o quererem ser, nestes seus tenrinhos quarenta e picos anos, num a-dmi-ra-ti-vo “o senhor é mesmo o primeiro aluno da escola?” e eu a fugir(-me) para o balcão, para mais uma cerveja, que seja a saideira, a abaladiça, que me afogue isto do agora perceber do quão fiquei, de repente, tanto que nem o percebi, isto do, afinal, já ser mesmo o mais-velho. A deixar-me daquilo do, sabido, envelhecendo. Pois chegado ao envelhecido.

6 thoughts on “O arraial

  1. Zé adorei o texto,o estilo, a musicalidade, a demonstrar a frescura incurável do autor a merecer outros arraiais, sempre de portas abertas, relevando-se aos novatos, noutros relatos saborosos tipo este. Bem hajas!Que bom este reencontro.
    <posso fazer chegar o texto ao " stor" Roxo? abraço

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    1. Obrigado pela visita, pelas palavras e pela festa. Até à próxima, a ver se arregimento um batalhão de mais-velhos. Óptimo será se o Roxo aqui chegar, e manda-lhe um abraço meu

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  2. Recebi isto por interposta pessoa. Desconfio que uma das miudas giras e simpáticas.
    Abri, quase por acaso, que no corre corre em que ando não me dou muita folga para leituras mais longas, as que prefiro. Mas ainda bem que li. Emocionaste-me caro Zézé (depois desta nostalgia toda tens mesmo que ser o Zézé…), e isso faz bem ai’alma. Beijinhos

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