Rebelo de Sousa e a escravocracia

mossuril

Uma visita de Estado presidencial tem uma agenda política (enfim, presume-se …). E uma agenda de eventos, que àquela está associada, explícita ou simbolicamente. O nosso PR foi ao Senegal e foi visitar a “casa dos escravos” na ilha Gorée, património mundial UNESCO, local simbólico do secular tráfico escravista transatlântico. Porquê? Para quê?

Ao ler agora a notícia vem-me à memória as inúmeras recentes visitas de governantes portugueses a Moçambique, expressando um relativo bom ambiente entre os países e os respectivos poderes. Só para referir os governantes de topo, em 1997 Sampaio esteve, também, em Quelimane, cidade que foi, até XIX, um entreposto de comércio escravista. E não aludiu ao facto, e ainda bem, que a viagem foi um momento importante de recomposição das relações entre os países. Mais simbolicamente, Guterres em 1998 e Cavaco Silva em 2008 visitaram a Ilha de Moçambique, também ela durante séculos local de prática e de (tentativa de) controlo do comércio de escravos. E muito menos visitaram o fronteiro e maravilhoso Mossuril, onde está a dita “Rampa dos Escravos” (se verdadeira ou mítica nunca o pude comprovar), pequeno mas muito importante porto de embarque de escravos. Um tráfico que não era só feito por portugueses, mas por uma série de comerciantes transoceânicos africanos, europeus e índicos, fornecidos por comerciantes do interior continental. Mas, claro, exponenciado pela febril procura dos mercados americanos e índicos. Ou seja, o poder português não levantou o assunto, a memória histórica. Privilegiando o reforço das relações, e nisso muito concordo. E talvez por não haver consenso entre as suas equipas sobre que tipo de abordagem ter. Talvez …

Rebelo de Sousa levanta agora o assunto no Senegal. Para quê, porquê? Que quis ele avançar? Qual o enquadramento que ele próprio quis dar, ou que a sua equipa de assessores que preparou a visita quis estabelecer? Mais, nas próximas visitas às ex-colónias portuguesas que ele virá, decerto, a fazer, que tipo de discurso lhe irá ser cobrado sobre esta matéria? À primeira vista isto foi, a um nível superficial da política, um puro disparate. Um voluntarismo, inebriado.

Mas falar do comércio de escravos e do tráfico de escravos (ou seja, do que foi legal e o do que foi ilegal) poderá ser uma boa coisa. Não para que Portugal peça “desculpas”. Pedir desculpa pelo passado longínquo secular é uma aberração, uma verdadeira indignidade intelectual. Transpira uma sacralização de uma identidade nacional, traz uma antropomorfização das sociedades, que não passa no crivo de um mero letrado. Nós não somos os nossos antepassados longínquos. Mas também porque não temos interlocutores a quem pedir a tal “desculpa”. O comércio e o tráfico de escravos foi uma gigantesca rede secular, multipolarizada, assente em diferentíssimas concepções de humanidade.

Agora o que é importante é reconhecer o quão estrutural foi o comércio escravista na sempre louvada “gesta” portuguesa. Como foi ele objectivo, estatal e privado, durante séculos, como absorveu os recursos humanos estatais, como rivalizou com Lisboa, como articulou com Lisboa. Como foi motriz da presença portuguesa em África, essa que continua a ser dita “cristocêntrica”, “civilizadora”. Como essa actividade estruturou as mentalidades, o modelo de relacionamento com as populações africanas (escravizáveis; comerciantes de escravos), algo bem perene. E como esse enorme comércio fundou uma verdadeira escravocracia, o capitalismo balbuciante da monarquia constitucional de XIX, que tantas loas (ao “fontismo” por exemplo) vamos lendo. Que o poder português, que o nosso PR, conduza o país a uma reflexão muito mais certeira sobre a sua história, sobre as suas constituintes, e sobre aquilo que motorizou as suas relações com as áreas africanas, que isso seja transportado para as escolas (que História se continua a aprender?), para os quotidianos dos adultos, isso é importante. Para que percebamos melhor a história, o que nos constitui as ideias sobre os outros. E, também, porque os outros nos olham e percebem de formas tão diversas das nossas expectativas (tão assentes no misticismo lusotropical/lusófono).

Mas que Rebelo de Sousa vá a Gorée encetar o discurso do poder português sobre a escravismo português com esta falsificação da história, uma meia-verdade para enganar, qual a velha missanga barata do comércio escravista? É inenarrável. Politicamente uma asneira, repito. E intelectualmente vergonhoso. Uma tragédia? Não, uma farsa.

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